“É livre a manifestação do pensamento e da expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, sendo vedado o anonimato. (CF 88).”

domingo, 8 de janeiro de 2012

O conhecimento capacita o povo para o acesso à justiça


A linguagem arcaica e obtusa pode ser modificada e superada através do esforço conjunto dos três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, visto que todos utilizam esta linguagem nas relações com os particulares. Alguns tribunais, como o do Rio Grande Sul distribuem cartilhas, contendo a estrutura organizacional do Judiciário, a função de cada órgão e um glossário de termos jurídicos. A AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) também lançou uma campanha, em 2007, "O Judiciário ao alcance de todos: Noções básicas de juridiquês", na qual entende que alterar a cultura lingüística do Direito é um desafio necessário para a consolidação do Estado Democrático de Direito.
Além de traduzir o que não pode ser substituído é de fundamental importância a simplificação da Linguagem Jurídica. A produção de peças simples, concisas, claras e objetivas, além de permitir que o cidadão tenha amplo acesso e possa ter vistas do processo quando desejar, auxilia na diminuição da morosidade, pois peças mais curtas e objetivas demandam um tempo menor do magistrado e, portanto, uma prestação jurisdicional mais célere.
O conhecimento capacita o povo para o acesso à justiça, para participar dos espaços de poder e das discussões. Educar a população, desde a infância, para a prática da cidadania, através da inclusão do conhecimento jurídico nas escolas, forma indivíduos críticos e participativos, capazes de transformar sua realidade sociopolítica e econômica. Somente assim, o povo terá, verdadeiramente, acesso à justiça.

Linguagem jurídica e acesso à Justiça

Andréa Medeiros Dantas

Quando se examina o emprego da linguagem jurídica nos moldes atuais,
dentro dos círculos forenses, torna-se clara a noção
de que esta é uma linguagem
que marginaliza e que exclui.
1 INTRODUÇÃO

— Ao julgar a justiça, te enganas — disse o religioso —; nas palavras de introdução à lei existe uma história referente a esse engano: diante da lei está postado um guarda. Até ele se chega um homem do campo que lhe pede que o deixe entrar na lei. Mas o sentinela lhe diz que nesse momento não é permitido entrar. O homem reflete e depois pergunta se mais tarde lhe será permitido entrar. "E possível", diz o guarda, "mas agora não." A grande porta que dá para a lei está aberta de par em par como sempre, e o guarda se põe de lado; então o homem, inclinando-se para diante, olha para o interior através da porta. Quando o guarda percebe isso desata a rir e diz: "Se tanto te atrai entrar, procura fazê-lo não obstante a minha proibição. Mas guarda bem isto: eu sou poderoso e contudo não sou mais do que o guarda mais inferior; em cada uma das salas existem outros sentinelas, um mais poderoso do que o outro. Eu não posso suportar já sequer o olhar do terceiro". O camponês não esperara tais dificuldades; parece-lhe que a lei tem de ser acessível sempre a todos, mas agora que examina com maior atenção o guarda,[...], decide que é melhor esperar até que lhe dêem permissão para entrar. O guarda dá-lhe então um escabelo e o faz sentar-se a um lado, frente à porta. Ali passa o homem, sentado, dias e anos. Faz infinitas tentativas para entrar na lei e cansa o sentinela com suas súplicas. [...] O homem, que para realizar aquela viagem, teve de se abastecer de muitas coisas, emprega tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Este aceita tudo, mas diz: "Aceito-o para que não julgues que te descuidaste de alguma coisa". Durante muitos anos aquele homem não afasta os seus olhos do sentinela. Esquece-se dos outros sentinelas e chega a parecer-lhe que este primeiro é o único obstáculo que lhe impede entrar na lei. Nos primeiros anos maldiz a gritos sua funesta sorte, mas depois, quando se torna velho, limita-se a grunhir entre dentes. E, como nos longos anos que passou estudando o sentinela, chega a conhecer também as pulgas de seu abrigo de pele, tornado outra vez à infância, roga até a essas pulgas para que o auxiliem a quebrar a resistência do guarda. Por fim vê que a luz que seus olhos percebem é mais fraca e não consegue distinguir se realmente se fez noite ao redor dele ou se simplesmente são os olhos que o enganam. Mas agora, em meio às trevas, percebe um raio de luz inextinguível através da porta. Resta-lhe pouca vida. Antes de morrer concentram-se em sua mente todas as lembranças e pensamentos daquele tempo em uma pergunta que até esse momento não tinha ainda formulado ao sentinela. Como seu corpo já rígido não se pode mover, faz um sinal ao guarda para que se aproxime. Este precisa inclinar-se profundamente pois a diferença de dimensões entre um e outro chegou a fazer-se muito grande em virtude do empequenecimento do homem. "Que é o que ainda queres saber?", pergunta o sentinela. "És incontestável". "Dize-me", diz o homem, "se todos desejam entrar na lei, como se explica que em tantos anos ninguém, além de mim, tenha pretendido fazê-lo?" O guarda percebe que o homem está já às portas da morte, de modo que para alcançar o seu ouvido moribundo ruge sobre ele: "Ninguém senão tu podia entrar aqui, pois esta entrada estava destinada apenas para ti. Agora eu me vou e a fecho. (KAFKA, 2007, p.238-239)
Franz Kafka, escritor alemão, foi um grande observador da alma humana. Em "O processo" ele descreve a alienação e a desesperança de um homem imerso num mundo que não consegue compreender. Um mundo de leis desconhecidas para os homens, que se submetem a ela sem questionar, pois não podem se defender daquilo que desconhecem.

Escrito entre os anos 1914 e 1915, num clima de sonhos e pesadelos, este romance surrealista mantém similaridades com nossa realidade, quase um século depois. As várias portas que separam o homem da justiça.

A linguagem jurídica sempre foi, para a maioria das pessoas, uma grande porta fechada. A linguagem é a ferramenta mais utilizada para efetivar a comunicação entre as pessoas e é o componente essencial de qualquer ciência, principalmente a ciência jurídica. Através da comunicação a justiça é realizada, os conflitos são solucionados e a paz social é alcançada.

Comunicação e Linguagem são elementos intrinsecamente conectados, que alcançam juntos todos os níveis da linguagem jurídica: a linguagem legislativa (dos códigos e normas), que cria o direito; a linguagem forense (dos processos), utilizada na aplicação do direito; a linguagem convencional (dos contratos), utilizada pelas partes; a linguagem doutrinária (dos mestres) que ensina o direito; a linguagem cartorária (dos cartórios de títulos e registros), cuja finalidade é registrar os atos de direito, e a linguagem oficial (das portarias, decretos, resoluções), bem próxima da legislativa, na edição de atos normativos.

O Direito sempre causou grande fascínio nas pessoas, por ser instrumento de liberdade e poder, que condiciona a ação humana. As palavras têm uma sonoridade mágica, os procedimentos são repletos de formalidades e solenidades. Um sistema de engrenagens cercado por uma aura de encantamento e dúvida, porque a maioria das pessoas nunca a chegou a entender como ele funciona.

A necessidade de popularização desse linguajar surge no Brasil com a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988, que estabeleceu muitos direitos e garantias que o povo ainda desconhece. Para o jurista Carlos Maria Cárcova, entre o direito e seus destinatários existe uma barreira opaca, que impossibilita que estes entendam como o primeiro, impedindo-os de se beneficiar dos direitos e garantias.

Para ter acesso à justiça é preciso entender como ela funciona, compreender o que dizem seus membros, seus funcionários, superar o entrave lingüístico. Os juristas, por fazerem parte do seleto grupo de pensadores que conhecem todos os meandros dessa linguagem devem ser os responsáveis para auxiliar o povo a transcender essas restrições.

Mas não só as palavras importam para o Direito, este comporta ainda, uma série de símbolos tão significativos quanto às palavras, a linguagem simbólica. A percepção dos níveis linguagem auxilia no entendimento das funções da linguagem, de como são editadas as leis, que passarão a regular a condutas, o vocabulário jurídico e os vícios que são encontrados e podem ser removidos para alcançar o acesso à justiça.

2 DEMOCRATIZAÇÃO DA LINGUAGEM JURÍDICA

2.1 FUNÇÃO SOCIAL DA LINGUAGEM JURIDICA

O ser humano, como qualquer ser vivo, é habilitado para perceber o meio natural em que se encontra, selecionando e criando alternativas para interagir com ele. É da condição humana, de nossa natureza, o perguntar, o testar, o questionar a definição das coisas, suas causas, sua serventia. Esse é o papel desempenhado pelo conhecimento possibilitar a interação. O Direito é uma invenção social humana e deve estar sempre a serviço do povo, apontando qual a conduta esperada e adequada, regulando as situações fáticas da vida. Nos dizeres de Calmon de Passos:

A primeira, a convicção de que o Direito é produzido pelos homens, inexistindo um Direito previamente dado por forças externas ou circunstâncias inelutáveis que aos homens se imponham, apenas lhes cumprindo identificá-las e submeterem-se ao seu império. Esta produção do Direito se dá socialmente, sempre como resultado do efetivo confronto e cooperação dos agentes sociais (indivíduos, grupos, instituições), mediante o processo político institucionalizado. O Direito posto, por conseguinte, traduz, sempre e necessariamente, o resultado desse confronto e dessa cooperação. (PASSOS, 1999, p. 81)

A linguagem é a ferramenta de trabalho do profissional que lida com as pessoas, como é o caso dos profissionais do direito. É através dela que a lei se comunica com o povo em todos os aspectos: na edição de atos normativos, na produção da lei, nas petições e nas sentenças, até que deixe a abstração legal e se concretize produzindo efeitos práticos na vida das pessoas. Por isso a necessidade de um ato comunicativo jurídico perfeito.

Com a fragmentação do conhecimento, cada área dele foi se especializando, criando seus mecanismos próprios. Cada ciência, apesar de suas teorias e fórmulas, para alcançar o fim de todo conhecimento que é a evolução humana, utilizou a linguagem para se aproximar da população. O Estado de Santa Catarina, em 2005, aprovou uma lei que determina a afixação de uma cartilha com os direitos dos pacientes nas recepções de hospitais públicos e privados. O artigo 8º da Lei Estadual nº 13.324/2005 prevê o seguinte: "O paciente tem direito a informações claras, simples e compreensíveis, adaptadas à sua condição cultural, sobre as ações diagnosticadas e terapêuticas, e o que pode decorrer delas, [...]".

Em 2009, a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) lançou o Guia de Redação de Bulas que, entre outras determinações, apresenta como princípios e regras a serem observados pelos fabricantes de medicamentos: utilização de linguagem clara, precisa e comum, sempre que possível e evitar o uso de termos técnicos e jargões médico/farmacêuticos. A fonte utilizada deverá ser maior (Fonte Times New Roman, tamanho 10, no mínimo) e bula deve ser disponibilizada em formato diferenciado, mediante solicitação, para portadores de deficiência visual, conforme a necessidade do paciente.

Iniciativas como estas provam que a lei pode, sim, cumprir sua função social de promoção da justiça através da comunicação e do entendimento. Função social pode ser descrita como os fins, os resultados obtidos através do trabalho humano, que demonstram a prevalência do interesse publico sobre o interesse dos próprios agentes. Atentar para ela é um dever profissional. A função social da linguagem jurídica é a de aproximar a sociedade da justiça, promovendo transformações sociais em proveito da coletividade.

O Brasil é uma República Federativa, constituída em Estado Democrático de Direito e tem com um dos fundamentos mais importantes a cidadania. É a definição dada pela CF/88, em seu artigo 1º, que reza no parágrafo único: "Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, no termos desta constituição". A CF/88, apelidada de Constituição Cidadã, foi um marco histórico na legislação do país, marcando a transição para a democracia participativa, a garantia de direitos e resgatando a figura do cidadão que pensa, critica e participa.

Na democracia a figura do povo é fundamental, ele é a fonte, o titular e o destinatário do poder. O cidadão tem direito e dever de votar, elegendo como representantes aqueles que julgar mais aptos para representá-lo. Os representantes do Executivo têm por atribuição a satisfação das necessidades do povo, enquanto Legislativo edita leis que regularão sua conduta. O judiciário, como todos os poderes, está sob o jugo da lei, tem a função de dizer o Direito, julgando as demandas conforme as leis e a Constituição. Dos três poderes, é o único que sofre apenas uma influência indireta do poder popular, já que seus membros não são escolhidos pelo povo.

A linguagem oficial, que segue a linguagem jurídica padrão, é tão inacessível para o leigo quanto esta última, quase impossível de decifrar. Para exercer seus direitos e cumprir seus deveres o cidadão precisa ter ciência deles. O pluralismo jurídico proposto por WOLKMER coloca a participação da comunidade e dos sujeitos coletivos de direito como condição para a construção de um Direito aberto e democrático, capaz de absorver as necessidades e carências da população e transformá-las em direitos. É através da vigilância, da reflexão e do voto que o povo elegerá políticos que verdadeiramente representem seus interesses que continuem a fazê-lo enquanto durar o mandato.

O mundo jurídico é o mundo abstrato e fechado das normas, uma criação científica do homem. No mundo nas normas as ações humanas são sempre descritas e reguladas para o dever ser, cheia de enunciados genéricos incapazes de oferecer uma interpretação unificada, mesmo para os que conhecem sua linguagem técnica. Logo, quando as possibilidades jurídicas são desconhecidas não há que se falar em direito exercido ampla e plenamente.

"Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece", é o que determina o artigo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. A maior das ficções jurídicas, uma presunção que nem o mais dedicado dos juristas concebe como real. Nenhuma pessoa pode se apoiar no fato de desconhecer uma lei para deixar de cumpri-la ou cumpri-la de modo diverso do prescrito: todos têm obrigação de conhecer a lei. Neste sentido, também o artigo 21 do Código Penal: "O desconhecimento da lei é inescusável". Mas, qual é a parcela da população brasileira possui o conhecimento jurídico adequado para conhecer a leis vigentes, saber interpretá-las e acompanhar novas publicações?

Uma contradição do Estado Democrático de Direito: conhecer a lei é dever de todos, mas compreender a lei é uma tarefa exclusiva para alguns poucos. E sem o conhecimento, ainda que básico, da linguagem jurídica o cidadão nunca terá condições nem liberdade para discutir nos espaços públicos. Por não compreender o que dizem, ele acaba exposto a ameaças e lesões que nunca chegarão ao conhecimento do Poder Judiciário. Vulnerabilidade diante da dominação lingüística, a impossibilidade de questionar o que se desconhece. Para o drama de Josef K. e de muitas pessoas: "Há muitas sutilezas em que a justiça se perde! [...]" e "Todas as coisas dependem da justiça". (KAFKA, 2007, p. 176 e 177)

Os deputados constituintes fizeram do princípio da igualdade também um direito e garantia, que serve como pilar para os outros direitos (artigo 5º, caput):"todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Mas, se somos todos iguais, somos iguais a quem?

Em um Estado em que o conhecimento jurídico é obrigatório e, no entanto, presumido, essa igualdade é passível de questionamento. Algumas poucas pessoas que trabalham na área do Direito certamente não são iguais a maioria da população da brasileira que desconhece, inclusive, suas obrigações como cidadão. Essa igualdade é meramente formal e continuará a ser enquanto a democratização do saber jurídico não acontecer.

Prevê a CF/88, no artigo 205, que a "educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". Mas a educação é apenas um dos inúmeros direitos que são desrespeitados no Brasil. Sua função é das mais importantes: preparar o cidadão para que ele cumpra seu dever como tal de conhecer e participar da discussão e criação de seus direitos, refletindo e argumentando para que esses direitos possam se tornar cada vez mais democráticos. A educação para o Direito é tão necessária quanto o aprendizado da matemática ou da geografia e precisa ser incluída na pauta das escolas e na programação dos meios de comunicação como matéria de interesse público. Não basta ter acesso à justiça, é preciso que o cidadão seja educado para acioná-la.

O artigo 64 do Ato das Disposições Constitucionais transitórias estabelece que:

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“É preciso entender que as leis servem apenas para orientar a nossa convivência, como sociedade. Mas nosso comportamento como pessoas depende de nossos valores, do uso de nosso discernimento e da nossa liberdade. Não dependemos de governos, partidos e líderes para sermos honestos e verdadeiros. Os valores morais é que nos mostram o caminho do bem e da verdade, são eles que impedem o ser humano de praticar atos ilícitos. Quando não são importantes na vida das pessoas, não há sistema que impeça um lamaçal de corrupção e de maldades.

Caráter, consciência, amor à verdade e ao próximo, generosidade, fidelidade, responsabilidade, respeito ao alheio, senso de justiça, são essas as virtudes que comandam a vida pública. Abandoná-las é decisão pessoal. Toda culpa é pessoal. Ela é decorrente do mau uso da liberdade. A culpa é tão intransferível quanto as virtudes. Nossa luta é convencer nosso povo a se comportar de acordo com essa visão ética. Por isso devemos sempre querer que os culpados sejam punidos.” (Sandra Cavalcanti, professora e jornalista, foi deputada federal constituinte.- O Estado de S.Paulo)

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,os-culpados--devem-ser-punidos-,798388,0.htm