“É livre a manifestação do pensamento e da expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, sendo vedado o anonimato. (CF 88).”

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Cotas: “A tentativa de combater o racismo na população é, portanto, pobre e falha.”





"A questão da dificuldade de ingresso de alunos negros nas universidades públicas trata-se, apenas, do descumprimento do governo de seu dever para com todos os brasileiros, que é fornecer um ensino de qualidade que garanta, indistintamente a toda população, a qualificação necessária para ingressar nas universidades públicas."


O racismo das cotas raciais

Lilian Bastos Ribas de Aguiar
A decisão dos gestores sobre a adoção ou não das cotas raciais pelas universidades, agora com sua constitucionalidade amparada pelo recente julgamento do Supremo Tribunal Federal, deve considerar, no entanto, que segregar para beneficiar é estimular essa divisão entre raças.
Introdução

É incontestável que o Brasil tem, constitucionalmente, o objetivo fundamental de construir uma sociedade livre, justa e solidária, assim como promover a redução das desigualdades, sem preconceito de raça ou qualquer outra forma de discriminação.
Todos são iguais, afirma a Constituição Federativa do Brasil, mas, para que essa igualdade seja efetivada, é necessário tratar os iguais de maneira igual e os diferentes de maneira diferente, na medida de suas desigualdades, para que a justiça prevaleça. Nesse contexto, admite-se a utilização de ações afirmativas.
Também não se nega que a população negra sofreu por muitos anos e ainda sofre com uma discriminação racial que, muitas vezes, lhes reduz as oportunidades.
A questão a ser analisada neste trabalho é se a adoção de cotas raciais seria, de fato, uma boa política para concretizar a integração do negro. Outro aspecto analisado é se, no Brasil, essa integração do negro já não foi, historicamente, realizada, sendo os brasileiros um povo de uma miscigenação intensa e evidente.
Recentemente, a discussão sobre a utilização dessa política retomou força como julgamento de uma ação que objetivava ter decretada a inconstitucionalidade do uso de cotas. O Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, pela constitucionalidade da adoção dessa política pelas universidades brasileiras. Este artigo não pretende questionar se essa decisão foi acertada, deliberação esta que, inclusive, tem forte base jurídica, fundamentando-se em princípios constitucionais. O que se questiona é a política de cotas raciais como solução para as práticas discriminatórias contra negros.
Pretende-se mostrar a adoção de cotas sociais como uma política de cotas que beneficiaria ainda mais alunos que sofrem com a má qualidade da educação.
Há, também, o objetivo de alertar para a ineficácia dessas políticas na solução do problema principal: a má qualidade da educação no Brasil e o ensino superior excludente.
Como procedimento metodológico para a realização deste estudo, a pesquisa bibliográfica com abordagem qualitativa foi utilizada, além da pesquisa comparada entre as cotas raciais no contexto em que foram utilizadas nos Estados Unidos e as cotas raciais no contexto brasileiro.

Julgamento do STF sobre a constitucionalidade das cotas raciais

A partir da recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalização das cotas raciais no julgamento da ação proposta pelo partido político DEM contra o sistema de reserva de vagas da Universidade de Brasília (UnB), as discussões sobre a utilização dessa prática, já realizada por algumas universidades do país, voltaram a receber destaque.
Como toda política pública, a ação afirmativa deve cumprir dois requisitos: o da legalidade e o da moralidade. Por legalidade devemos entender a qualidade de se harmonizar a ação afirmativa com o sistema legal do país onde é implantada, mormente com a norma constitucional. A despeito de certos sentidos derrogatórios do termo, por moralidade aqui se entende a justificação de uma ação com relação aos valores principais da sociedade onde ela acontece. Uma iniciativa é moral se está em consonância com, ou seja, pode ser justificada em relação aos valores centrais de uma comunidade política.  (ZONINSEIN; FERES JÚNIOR, 2008, p. 9)
A Constituição Federal de 1988 assegura a igualdade entre todos os indivíduos sem qualquer distinção. Trata-se do princípio da isonomia. Depreende-se desse princípio a compreensão de que todos são iguais (igualdade formal), mas caso essa igualdade não esteja concretizada, cabe ao Ente Estatal desenvolver os mecanismos necessários para que o tratamento sem distinções seja observado (isonomia material).
A isonomia material visa a fornecer um tratamento igual para os iguais e um tratamento diferenciado para os diferentes, na medida das suas desigualdades. O Supremo Tribunal Federal decidiu a favor da constitucionalidade da adoção de sistemas de cotas raciais, juridicamente fundamentado por esse princípio. De acordo com ele, as cotas raciais podem ser vistas como umas formas de discriminação positiva, uma iniciativa moral que almeja beneficiar uma parcela da população que é, historicamente, desfavorecida.

Ensino superior excludente

Atualmente, constata-se, no mercado de trabalho, uma crescente valorização da qualificação educacional dos candidatos. A educação superior é vista como um determinante do acesso a maiores níveis de renda, além de ser uma maior proteção contra o desemprego.
Há, no entanto, muitas dificuldades para que um estudante ingresse no ensino superior público, que, além de ser gratuito para o aluno, ainda é mais valorizado pelos empregadores que o ensino obtido nas faculdades particulares.
Inicialmente, comum a todos os candidatos, há o problema das poucas vagas ofertadas pelas universidades públicas. Segundo Oliveira (2009), observa-se uma diferença numérica preocupante entre o número de vagas oferecidas pelas universidades públicas brasileiras e as disponibilizadas por nossos vizinhos, Argentina, Uruguai e Chile. É, portanto, bastante desproporcional à necessidade da população brasileira. Isso ocorre embora nosso investimento por aluno em instituições públicas seja maior que nesses países. Torna-se indispensável repensar a alocação de recursos financeiros no ensino superior para abranger mais alunos. Para que os atuais gastos com a educação, que já são muitos, não sejam majorados, devem, ao menos, ser repensados na sua eficiência.
Além disso, há uma dificuldade ainda maior para os alunos egressos de escolas públicas: a concorrência com alunos de escolas particulares.
Para confirmar que a educação brasileira continua excludente, aqui está outra prova evidente: a dicotomia entre curso noturno e curso diurno. Os cursos das instituições (universidades) públicas são predominantemente diurnos com quase 2/3 do total; ou seja, para aqueles que podem estudar sem trabalhar, vêm dos melhores colégios particulares e pagaram por uma boa educação básica para concorrer na proporção de oito candidatos por vaga. Diferentemente, os alunos das instituições superiores privadas, vêm das classes populares, de poder aquisitivo mais baixo, em que 68% (mais de 2/3) frequentam cursos à noite, ou seja, trabalham durante o dia por questão de sobrevivência. Comparativamente, constata-se grande diferença entre a qualidade de um curso diurno e outro curso noturno. (OLIVEIRA, 2009, p. 55)
Estes gozam de maior renda familiar, portanto possuem uma educação de mais qualidade e podem dedicar-se integralmente aos estudos.
Deve ser considerada, também, a dificuldade de um aluno de baixa renda familiar manter-se na universidade, sem recurso financeiro para arcar com gastos como transporte e alimentação, constituindo, muitas vezes, motivo de evasão escolar ou de baixo desempenho.

Ações afirmativas

Quando alguma pessoa sofre uma atitude negativa por parte de outra pessoa que discrimine o grupo racial ao qual aquela pertence trata-se de preconceito racial. Essa discriminação pode ser verbal ou por meio de atitudes que neguem algum direito ou que prejudiquem alguém de alguma forma.
Os negros sofreram por muito tempo uma verdadeira segregação racial ao redor do mundo baseada numa infundada pressuposição de que a raça negra seria inferior à branca. Infelizmente, mesmo após o fim da escravidão, ainda é frequente a discriminação racial, perpetuando uma série de prejuízos aos afrodescendentes.
A adoção do sistema de cotas raciais nas faculdades baseou-se na iniciativa dos Estados Unidos de gerar ações políticas de ação afirmativa, que visam a integrar o negro à sociedade de dominação branca através da criação de políticas que favoreçam a igualdade de oportunidades entre brancos e negros. [1]
São exemplos de ações afirmativas adotadas nos Estados Unidos: a contratação pelo governo estadunidense de empresas que adotassem políticas de ação afirmativa, a proibição de critérios de admissão desnecessários que pudessem causar discriminação, o auxílio financeiro governamental a empresas controladas por minorias e a adoção de cotas reservando percentuais mínimos para a contratação de minorias por algumas empresas e pelas universidades.[2]
Esse sistema busca reduzir a discriminação contra os negros, que remonta aos tempos de escravidão e que, infelizmente, permanece até os dias atuais.
A adoção de cotas raciais por universidades brasileiras é exemplo de ação afirmativa implantada no Brasil visando a aumentar as oportunidades para a população negra.
É necessário, no entanto, compreender os diferentes contextos da aplicação dessa política. Nos Estados Unidos, houve anos de legislação discriminatória, chamada de Jim Crow.
Em 1896, no caso Plessy vs. Ferguson consolidou-se a segregação racial mediante o triunfo da doutrina dos iguais, porém separados (separated but equal), que prevê o modelo de apartheid, no qual se deve garantir igualdade de tratamento, porém em estabelecimentos e locais diferentes. A cláusula jamais se implementou faticamente, dadas as notórias condições inferiores impostas aos negros, em restaurantes, hotéis, escolas, banheiros públicos. (GODOY, 2004, p 75)
Os negros não podiam entrar nos mesmos estabelecimentos que os brancos, mas aqueles que eram destinados aos negros eram de qualidade inferior, inclusive as escolas públicas destinadas a eles, com ensino deficiente e professores com remunerações menores.
Diferentemente dos Estados Unidos, os negros, se considerados como a junção de pretos e pardos, não são minoria, mas sim a maioria da população. E, no Brasil, as linhas de separação entre negros e brancos não são nítidas. Nos Estados Unidos, bastava que a pessoa tivesse um ancestral negro para que fosse considerada negra. Aqui, não há critérios objetivos que possa estabelecer quem comporia os integrantes das cotas raciais.

Inexistência de raças

Atualmente, a partir da primeira década do século XXI, é amplamente aceita a ideia da inexistência de raças do ponto de vista biológico. Há uma variação genômica muito pequena entre as supostas raças, não tendo uma segregação entre raças, portanto, fundamento genético ou biológico.[3]
Há, ainda, a miscigenação constante e intensa, que aumenta a diferenciação dos grupos biológicos que pudessem compor essas raças.
O que existe é essa classificação no contexto social, devendo esse pensamento ser combatido. A inexistência de raças deve ser absorvida pela sociedade, combatendo qualquer atitude discriminatória infundada. O que se deve estimular é a desracialização da sociedade, compreendendo a individualidade de cada ser humano, não aceitando qualquer divisão ou classificação em raça, sendo a única existente a raça humana.

Combater o preconceito com o preconceito

Com a adoção das cotas sociais pelas universidades, percebe-se que há uma institucionalização do racismo, pois, por não haver nenhuma diferença física ou intelectual entre os negros e o resto da população brasileira que justifique um tratamento diferenciado, o que deve ser combatido é o preconceito. A questão da dificuldade de ingresso de alunos negros nas universidades públicas trata-se, apenas, do descumprimento do governo de seu dever para com todos os brasileiros, que é fornecer um ensino de qualidade que garanta, indistintamente a toda população, a qualificação necessária para ingressar nas universidades públicas.
Um outro caso de discriminação histórica é o caso das próprias mulheres, que, ao libertarem-se do domínio do poder marital através de movimentos feministas, também sofreram grandes dificuldades para ingressar no mercado de trabalho e em universidades tradicionalmente masculinas, como a faculdade de direito e a de medicina. Com a proibição de discriminação no ensino, as mulheres começaram a garantir seu espaço. Hoje, ocupam muitas das vagas dessas universidades e possuem predomínio numérico nas matrículas no ensino superior.[4]
Com relação à tentativa antidiscriminatória da política de cotas raciais, esse sistema atenderá apenas uma parcela da numerosa população brasileira negra e parda. A tentativa de combater o racismo na população é, portanto, pobre e falha. Não trará efeitos antidiscriminatórios contra a população negra, apenas beneficiará alguns de seus integrantes, que poderão, inclusive, sofrer ainda maior discriminação nas faculdades por ingressarem nas mesmas em virtude das vagas destinadas à cota racial.
Para que haja um combate à segregação racial, seria necessário combater distinções entre negros e brancos, criando as mesmas oportunidades para todos e não forçar uma inclusão maior da população negra no ensino superior justamente baseada na diferenciação racial.
Admita-se a hipótese de um rapaz branco pobre que pretenda ingressar em alguma faculdade pública, da mesma forma que um colega negro que se encontre na mesma situação. O rapaz branco, na hipótese admitida, seria mais estudioso, com um rendimento melhor que o seu colega negro, mas o primeiro não conseguiria uma vaga para a faculdade, já este último conseguiria ingressar na faculdade devido à adoção do sistema de cotas raciais, que utiliza uma nota de corte menor que a usada pelas vagas destinadas aos candidatos que não concorrem às vagas reservadas às cotas. Essa situação descrita poderia causar uma animosidade entre esses garotos, criando um efeito contrário à tentativa de antidiscriminação pretendida pela política adotada. O garoto branco, que sofre com a mesma carência e com as mesmas condições precárias de ensino, seria ainda mais desfavorecido pela maior limitação do número de vagas, já que algumas seriam destinadas apenas para candidatos negros.
A discriminação contra qualquer etnia deve ser combatida. Após o fim da escravidão, iniciou-se a elaboração de legislação contra o preconceito racial com a promulgação da chamada Lei Afonso Arinos, em julho de 1951, ameaçando com punição a prática do preconceito.[5] A Constituição da República de 1988, no caput do artigo 5°, proclama que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, além de trazer no inciso XLII do mesmo artigo que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível. Em 1989 foi criada a Lei 7.716, combatendo os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Deve ocorrer também a fiscalização do cumprimento dessas iniciativas do Legislativo para que atitudes discriminatórias sejam punidas, concedendo a todos os grupos raciais as mesmas oportunidades indistintamente.
 Fonte:

Nota: grifos de Vitima da Lei



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“É preciso entender que as leis servem apenas para orientar a nossa convivência, como sociedade. Mas nosso comportamento como pessoas depende de nossos valores, do uso de nosso discernimento e da nossa liberdade. Não dependemos de governos, partidos e líderes para sermos honestos e verdadeiros. Os valores morais é que nos mostram o caminho do bem e da verdade, são eles que impedem o ser humano de praticar atos ilícitos. Quando não são importantes na vida das pessoas, não há sistema que impeça um lamaçal de corrupção e de maldades.

Caráter, consciência, amor à verdade e ao próximo, generosidade, fidelidade, responsabilidade, respeito ao alheio, senso de justiça, são essas as virtudes que comandam a vida pública. Abandoná-las é decisão pessoal. Toda culpa é pessoal. Ela é decorrente do mau uso da liberdade. A culpa é tão intransferível quanto as virtudes. Nossa luta é convencer nosso povo a se comportar de acordo com essa visão ética. Por isso devemos sempre querer que os culpados sejam punidos.” (Sandra Cavalcanti, professora e jornalista, foi deputada federal constituinte.- O Estado de S.Paulo)

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,os-culpados--devem-ser-punidos-,798388,0.htm