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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O caso da escrivã deixada nua: violação a direitos da personalidade

O caso traz importantes questionamentos na seara penal, como o abuso de autoridade, a obtenção de provas por meios ilícitos ou ilegítimos, a violação a direitos da personalidade e alguns outros. 

http://www.youtube.com/watch?v=fQrJA0xKOAY
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O caso da escrivã revistada em uma delegacia: ilegalidade justifica ilegalidade?
Por Fábio Coutinho de Andrade

Introdução
O caso da escrivã que foi deixada nua em uma delegacia em Parelheiros, na zona Sul de São Paulo, está circulando pela mídia digital. O vídeo foi levado ao ar pelo jornal da Band e caiu no youtube, popular site de vídeos. Após, foi divulgado por diversos sites, entre eles o do Terra.
O caso traz importantes questionamentos na seara penal, como o abuso de autoridade, a obtenção de provas por meios ilícitos ou ilegítimos, a violação a direitos da personalidade e alguns outros, que serão devidamente expostos no decorrer desse artigo.


Entenda o caso
O caso começou quando um homem envolvido em um inquérito no 25º Distrito Policial, em Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo, por ter sido flagrado em posse de munições, procurou o Ministério Público para denunciar a escrivã, que segundo ele havia pedido uma quantia em dinheiro para livrá-lo da investigação.
O homem foi orientado a prosseguir com as negociações com a escrivã e, na data marcada para a entrega do dinheiro, o processo foi acompanhado por policiais da Corregedoria. Após a entrega da quantia, a policial foi abordada e a gravação foi iniciada, conforme disse, neste sábado (19), a corregedora-geral da Polícia Civil de São Paulo, Maria Inês Trefiglio Valente
De acordo com Maria Inês, o vídeo tem mais de 40 minutos e mostra toda negociação para que a escrivã entregasse o dinheiro, que seria a prova do crime. A gravação foi feita, segundo a corregedora, "para a garantia de todos", como é comumente feito em ações da corregedoria.
Segundo Maria Inês, a escrivã colocou o dinheiro dentro da calça, fazendo com que fosse necessária a retirada da peça de roupa para a apreensão do dinheiro. A policial chega a ser revistada por uma mulher, mas nada foi encontrado. "O delegado pede que ela entregue o dinheiro, mas ela se recusa. Ele tomou a atitude que tinha que tomar para pegar a prova. Um policial sabe o custo das atividades ilegais dele", afirmou a corregedora.
Os policiais então decidiram fazer o que aparece nas imagens: algemaram a escrivã e tiraram a roupa dela. No vídeo divulgado, um deles afirma ter encontrado o dinheiro. Ela foi autuada em flagrante pelo crime de concussão e sofreu um processo administrativo, finalizado em outubro de 2010 com sua expulsão da Polícia Civil. Ela ainda responde a processo criminal por concussão e tem audiência marcada para maio.
(Fonte: Globo.com)


O crime de concussão
O crime de concussão está previsto no artigo 316 do Código Penal, ipsis verbis:
Art. 319. Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida..."
(omissis).
A exigência deve ser formulada em razão da função, tratando-se de crime próprio, sendo praticado somente pelo detentor de cargo ou função pública. Quanto à vantagem em si, pode ser ela patrimonial ou econômica, presente ou futura, conforme posição que advoga a tese ampla do conceito de indevida vantagem, a exemplo de Damásio de Jesus.
Tem a natureza de delito formal, consumando-se a concussão quando o agente exige, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida. O recebimento da vantagem é mero exaurimento do crime.
Além disso, exige o crime de concussão o elemento subjetivo, qual seja, o dolo, não havendo previsão legal para a modalidade culposa. O funcionário público, em razão de sua função, exige, livre e conscientemente, do sujeito passivo, uma vantagem indevida. A prova dessa exigência deve constar dos autos no momento em que ela foi realizada.
De acordo com o ensinamento do mestre Rogério Greco, não é possível a realização da prisão em flagrante no ato da entrega da indevida vantagem, haja vista o crime ter se consumado quando da exigência desta. Trata-se, no dizer de Paulo Rangel Dinamarco, de prisão manifestamente ilegal, que deverá imediatamente ser relaxada pela autoridade judiciária, nos precisos termos do artigo 5º, LXV, da Constituição Federal.


Flagrante esperado, flagrante provocado e flagrante forjado
No escólio do insigne mestre Norberto Avena, flagrante esperado é "aquele no qual a autoridade policial (via de regra), sabendo, por fontes fidedignas, que será praticado um crime, desloca-se até o local em que este deverá acontecer, aguardando o início dos atos de execução ou, conforme o caso, a própria consumação, realizando, ato contínuo, a prisão em flagrante de todos os envolvidos. Essa modalidade de flagrante é válida, implicando tentativa punível ou, até mesmo, a consumação do crime."
Diferente é a situação do flagrante provocado ou preparado, em que a autoridade instiga o agente a praticar o crime, sem este saber que está sob ostensiva vigilância das autoridades, que só aguardam o início dos atos de execução para realizar o flagrante. Nesse caso não há flagrante válido, tratando-se da hipótese de crime impossível.
Nesse diapasão, temos o enunciado da Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal, que dispõe: "não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação".
Já no flagrante forjado não houve qualquer ilícito praticado, tendo a autoridade ou qualquer outra pessoa "plantado" a prova no suposto local do crime, tendo em vista acusar falsamente alguém pela prática do delito. É ilegal, sujeitando os responsáveis à devida responsabilização na esfera criminal e mesmo cível, se houver danos à personalidade, por exemplo, como no caso da escrivã, que teve sua imagem exposta, revelando mesmo suas "partes íntimas".
Nesse sentido, cabível será o pedido de indenização por danos morais ou à imagem contra o Estado, tendo em vista que este deveria zelar pela preservação de tais imagens, não expondo a escrivã de tal forma, vexatória, causando ainda mais humilhação a ela, causando o que se convencionou chamar de "vitimização secundária", que espelha as ações e conseqüências resultantes dos delitos com o sistema policial e jurídico-penal do aparelhamento estatal diante dos envolvidos, principalmente a vítima.
O fato é que uma ilegalidade não pode dar suporte a outra, afinal, como diz um antigo adágio, "o fato de alguém estar certo não lhe dá o direito de ser estúpido" ou, no presente caso, o direito de violar as normas penais e processuais penais brasileiras, matizando-as sob o pálido reflexo da legalidade, quando o que se tem, claramente, é o cometimento de arbitrariedades e desvirtuamentos da lei.
Temos ainda, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (da qual o Brasil é signatário), em seu artigo 12, que "ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação".
Não se deve perquirir aqui da qualidade da vítima, se foi ela responsável ou não pelo cometimento de um ilícito, pois mesmo que tenha cometido as mais graves infrações, deve ser-lhe garantida a proteção da lei, com todas as garantias daí inerentes, como o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, a produção de provas, etc.
Negar tal direito seria retroceder ao tempo das inquisições, das ordálias, legitimando a tortura em busca de uma confissão ou de uma "prova cabal", que, se confrontada com outras provas existentes, não se sustenta, deslegitimando a atuação estatal, por meio dos agentes que a representam.


Busca pessoal
A busca pessoal é a diligência realizada no corpo da pessoa, em suas roupas ou objetos que tenha consigo. Pode ser realizada a partir de simples suspeitas de que o indivíduo esteja portando algo proibido ou ilícito, podendo ser executada pela autoridade policial e seus agentes ou pela autoridade judiciária e quem essa determinar, como preleciona o artigo 240, § 2º, do Código de Processo Penal.
Cabe trazer à colação o que nos informa a norma insculpida no artigo 249 do Código de Processo Penal, segundo o qual "a busca em mulher será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência".
No caso, havia pelo menos duas policias presentes no local, que poderiam atender às ordens do delegado, conduzindo a diligência em conformidade com a lei. Mas o que vemos é bem diferente: a vítima foi forçada a tirar sua roupa, inclusive peças íntimas, na frente de outros policiais. Violação frontal e direta ao texto legal, tratando-se de prova ilegítima.


Provas ilícitas e ilegítimas
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“É preciso entender que as leis servem apenas para orientar a nossa convivência, como sociedade. Mas nosso comportamento como pessoas depende de nossos valores, do uso de nosso discernimento e da nossa liberdade. Não dependemos de governos, partidos e líderes para sermos honestos e verdadeiros. Os valores morais é que nos mostram o caminho do bem e da verdade, são eles que impedem o ser humano de praticar atos ilícitos. Quando não são importantes na vida das pessoas, não há sistema que impeça um lamaçal de corrupção e de maldades.

Caráter, consciência, amor à verdade e ao próximo, generosidade, fidelidade, responsabilidade, respeito ao alheio, senso de justiça, são essas as virtudes que comandam a vida pública. Abandoná-las é decisão pessoal. Toda culpa é pessoal. Ela é decorrente do mau uso da liberdade. A culpa é tão intransferível quanto as virtudes. Nossa luta é convencer nosso povo a se comportar de acordo com essa visão ética. Por isso devemos sempre querer que os culpados sejam punidos.” (Sandra Cavalcanti, professora e jornalista, foi deputada federal constituinte.- O Estado de S.Paulo)

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,os-culpados--devem-ser-punidos-,798388,0.htm